O uso de probióticos como terapia adjuvante para doença celíaca
A doença celíaca é uma das doenças autoimunes mais comuns, com prevalência relatada de 0,5 a 1% da população geral [1]. Estudos demonstram que a maioria dos casos da doença permanece não detectada devido aos sintomas heterogêneos e/ou conhecimento deficiente sobre o assunto.
Podendo desenvolver-se em qualquer idade, a doença celíaca acomete as mulheres com mais frequência do que os homens, na proporção de 3:1 [2]. Os sintomas clínicos típicos da doença são diarreias crônicas, anemia, osteoporose e cólicas intestinais. Se não for tratada, a doença celíaca pode resultar em complicações como linfoma intestinal e aumento do risco de morte precoce.
Além disso, também foi relatada a coexistência da doença celíaca com transtornos mentais, como esquizofrenia e diabetes mellitus tipo 1.
A imunopatogênese da doença celíaca
Evidências sugerem que outros fatores ambientais além do glúten, como a microbiota intestinal e infecções, podem moldar a resposta imune do hospedeiro ao glúten [3]. No entanto, as relações detalhadas de causa e efeito e a interação precisa entre a genética do hospedeiro, a nutrição e a microbiota ainda não foram totalmente desvendadas.
O evento chave na patogênese da doença celíaca é a ativação de uma resposta do sistema imune específica ao glúten [3]. Essa resposta é impulsionada por interações moleculares entre peptídeos derivados do glúten e o locus HLA-DQ2/8, e a enzima transglutaminase 2 (tTG2) [3].
Devido a um alto teor de prolina, o glúten é bastante resistente à degradação proteolítica por enzimas digestivas, o que leva ao aparecimento de peptídeos de gliadina bastante longos no lúmen do intestino delgado [3].
Esses peptídeos imunogênicos podem interagir com a enzima transglutaminase 2, que converte resíduos neutros e polares de glutamina em ácidos glutâmicos carregados [3]. Os aminoácidos carregados positivamente nas moléculas HLA-DQ2 ou HLA-DQ8 na superfície das células apresentadoras de antígeno ligam-se, nestes casos, com maior afinidade aos peptídeos de glúten, que abrigam cargas negativas [7].
Em pacientes com a doença celíaca, esses peptídeos nocivos desencadeiam uma resposta alterada, tanto da imunidade celular, quanto da humoral [4].
Essas interações desencadeiam uma expansão de células T CD4+ específicas do glúten, as quais produzem citocinas pró-inflamatórias, como interleucinas e interferon-gama (IFN γ), criando assim um ambiente inflamatório na lâmina própria do intestino delgado [3,4].
Uma dieta sem glúten é suficiente para o tratamento da doença celíaca?
Atualmente, o único tratamento disponível para a doença celíaca é a estrita eliminação do glúten da dieta. Esta dieta sem glúten geralmente resulta no alívio dos sintomas e na melhora do dano da mucosa do intestino delgado [5].
No entanto, eliminar todo o glúten na dieta pode ser considerado mais um objetivo aspiracional do que um fato, pois isso é muito difícil de alcançar mesmo para pacientes altamente motivados, onde as taxas de adesão são geralmente acima de 80-90% [6].
Devido ao amplo uso de trigo na maioria dos ingredientes alimentares, o glúten pode ser difícil de ser evitado, devido a sua exposição acidental.
Essas dificuldades da dieta sem glúten foram destacadas num estudo, publicado na revista Frontline Gastroenterol., onde os autores determinaram os valores em gramas de glúten ingeridos e excretados por adultos que utilizaram uma dieta sem glúten [7].
Este estudo envolveu 18 adultos com doença celíaca confirmada por biópsia que utilizaram uma dieta sem glúten por 24 meses, e realizadas coletas dos alimentos (porções de 25%), da urina e amostras de fezes durante 10 dias.
Como resultados, os autores observaram que dois terços dos pacientes tiveram pelo menos uma amostra com resultado positivo para peptídeos de glúten imunogênicos, e esta pode ser uma razão para que, após a dieta sem glúten, até 30% dos pacientes tenham problemas persistentes [7], e a atrofia terapêutica das vilosidades do intestino delgado seja relatada em 60% deles [7].
Papel protetor da microbiota intestinal na patogênese da doença celíaca
Atualmente, vários estudos têm utilizado abordagens dietéticas emergentes baseadas em microorganismos a fim de avaliar os efeitos da modulação da microbiota dos pacientes com a doença celíaca, e seu potencial benefício para o manejo e/ou prevenção da doença.
Muitos achados já relataram que o metabolismo do glúten está intimamente relacionado com a microbiota do trato gastrointestinal [8,9], e que estes microrganismos desempenham um papel protetor na patogênese da doença celíaca.
Os mecanismos para esse papel protetor envolvem, entre outros, o metabolismo do antígeno desencadeante (por exemplo, gliadina), aumento da permeabilidade da barreira intestinal e inflexão das respostas imunes inata e adaptativa [10].
Num estudo publicado na revista Gastroenterology, os autores relataram que as bactérias no trato gastrointestinal podem hidrolisar o glúten in vivo e reduzir eficientemente sua imunogenicidade [11].
Além disso, bactérias administradas por via oral, Lactococcus lactis, foram relatadas como indutoras de tolerância antígeno-específica, em um modelo animal experimental [12].
Probióticos
Os probióticos são microrganismos vivos que demonstraram efeitos benéficos na saúde humana após serem administrados em quantidades adequadas, restaurando, desta maneira, a composição do microbioma intestinal e prevenindo a disbiose da microbiota intestinal, assim como melhorando a imunidade [13,14].
Nesse sentido, as bactérias probióticas estão sendo constantemente estudadas, e suas aplicações são também consideradas promissoras nos tratamentos adjuvantes para várias doenças intestinais, incluindo a doença celíaca.
A maioria das bactérias probióticas pertence ao gênero Lactobacillus e Bifidobactéria, e elas são consideradas “Generally Recognized As Safe” (GRAS) pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (USFDA).
Probiótico Lactobacillus sp. e Bacillus sp. isolados de diferentes fontes são usados principalmente como candidatos probióticos porque são geralmente seguros e econômicos.
Num estudo publicado na revista Nutrients, os autores relataram que formulações com enzimas comerciais associadas com Lactobacillus (Lp.) plantarum, (Lc.) paracasei, Bacillus subtilis, Bacillus pumilus, Lp. plantarum, Lc. Paracasei, Limosilactobacillusreuteri, Bacillus megaterium, B. pumilus, mostrou hidrólise do glúten [15].
Esses achados demonstram que essas formulações podem ser usadas para melhorar a digestão de pacientes com a doença celíaca e aqueles sensíveis ao glúten [15].
Em suma, muitas descobertas provaram uma estreita relação entre probióticos com a flora intestinal e imunidade em relação a doença celíaca, e que esses probióticos podem ser uma terapia dietética complementar bio-segura contra a doença.
Os mecanismos moleculares completos dessas ações “bióticas” requerem mais pesquisas, mas seus resultados apresentados até o momento sugerem que possam ser consideradas uma intervenção nutricional para a doença celíaca em combinação com a dieta sem glúten.
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Referências:
[1] Singh, P. et al. Global prevalence of celiac disease: systematic review and meta-analysis. Clin. Gastroenterol. Hepatol. 2018, 16, 823–836.
[2] Ciacci, C.; Cirillo, M.; Sollazzo, R.; Savino, G.; Sabbatini, F.; Mazzacca, G. Gender and clinical presentation in adult celiac disease. Scand. J. Gastroenterol. 1995, 30, 1077–1081.
[3] Levescot A, Malamut G, Cerf-Bensussan N. Immunopathogenesis and environmental triggers in coeliac disease. Gut. 2022 Jul 25;71(11):2337–49. doi: 10.1136/gutjnl-2021-326257. Epub ahead of print. PMID: 35879049; PMCID: PMC9554150.
[4] Sollid, L. M. Coeliac disease: dissecting a complex inflammatory disorder. Nat. Rev. Immunol. 2002, 2, 647–655.
[5] Syage, J.; Kelly, C.; Dickason, M.; Cebolla, A.; Leon, F.; Dominguez, R.; Sealey-Voyksner, J.A. Determination of gluten consumption in celiac disease patients on a gluten-free diet. Am. J. Clin. Nutr. 2018, 107, 201–207.
[6] Silvester, J.; Comino, I.; Kelly, C.; Sousa, C.; Duerksen, D.; DOGGIE BAG Study Group. Most Patients With Celiac Disease on Gluten-Free Diets Consume Measurable Amounts of Gluten. Gastroenterology 2020, 158, 1497–1499.e1.
[7] Baggus, E.M.R.; Hadjivassiliou, M.; Cross, S.; Penny, H.; Urwin, H.; Watson, S.; Woodward, J.M.; Sanders, D.S. How to manage adult celiac disease: Perspective from the N.H.S. England rare diseases collaborative network for non-responsive and refractory coeliac disease. Frontline Gastroenterol. 2019, 11, 235–242.
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[10] Caminero, A.; Meisel, M.; Jabri, B.; Verdu, E. Mechanisms by which gut microorganisms influence food sensitivities. Nat. Rev. Gastroenterol. Hepatol. 2019, 16, 7–18.
[11] Caminero, A.; Galipeau, H.; McCarville, J.; Johnston, C.W.; Bernier, S.P.; Russell, A.K.; Jury, J.; Herran, A.R.; Casqueiro, J.; Tye-Din, J.A.; et al. Duodenal bacteria from patients with celiac disease and healthy subjects distinctly affect gluten breakdown and immunogenicity. Gastroenterology 2016, 151, 670–683.
[12] Huibregtse, I.; Marrieta, E.; Rashtak, S.; Koning, F.; Rottiers, P.; David, C.S.; van Deventer, S.J.H.; Murray, J.A. Induction of antigen-specific tolerance by oral administration of Lactococcus lactis delivered immunodominant DQ8-restricted gliadin peptide in sensitized nonobese diabetic Abo Dq8 transgenic mice. J. Immunol. 2009, 183, 2390–2396.
[13] Hill, C.; Guarner, F.; Reid, G.; Gibson, G.R.; Merenstein, D.J.; Pot, B.; Morelli, L.; Canani, R.B.; Flint, H.J.; Salminen, S.; et al. Expert consensus document. The International Scientific Association for Probiotics and Prebiotics consensus statement on the scope and appropriate use of the term probiotic. Nat. Rev. Gastroenterol. Hepatol. 2014, 11, 506–514.
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[15] De Angelis, M.; Siragusa, S.; Vacca, M.; Di Cagno, R.; Cristofori, F.; Schwarm, M.; Pelzer, S.; Flügel, M.; Speckmann, B.; Francavilla, R.; et al. Selection of Gut-Resistant Bacteria and Construction of Microbial Consortia for Improving Gluten Digestion under Simulated Gastrointestinal Conditions. Nutrients 2021, 13, 992;